quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Eu te amo em Cristo Jesus


Quase todas as formas de liturgias em uso nas igrejas evangélicas – pelo menos naquelas que tenho visitado – prevê o uso do tão famoso: “Eu te amo em Cristo Jesus”. Essa prática, embora um pouco desgastada, ainda gera um clima agradável em nossas comunidades e de alguma forma nos faz lembrar que estamos adorando a Deus juntamente com outras pessoas e que a espiritualidade cristã não é uma prática a ser desenvolvida na solidão do indivíduo, mas na coletividade do corpo. No entanto, não se pode negar a desconfiança subconsciente que permeia a mente de alguns de nós em relação à veracidade de nossas declarações. Quem nunca se sentiu um tanto desconfortável quando o dirigente do louvor propõe esse momento de comunhão, e a primeira pessoa para quem seu olhar se dirige é exatamente aquela com quem você tem tido problemas relacionais? Ou quem nunca teve uma discussão tempestuosa com o cônjuge minutos antes de sair de casa, e nessa hora do culto volta-se rapidamente para o lado oposto de onde ele ou ela esteja para evitar o (des)concerto? Esses momentos da prática evangélica muitas vezes nos confrontam com nossa dificuldade em realmente viver o que alardeamos com nossos lábios.
O que significa amar no amor de Cristo? Podemos entender essa declaração de algumas formas. Poderíamos dizer que amar no amor de Cristo é amar alguém como Cristo o ama, e aí temos um grande problema. Esse é o padrão para o amor entre marido e esposa conforme proposto pelo apóstolo Paulo em sua carta aos Efésios, e os casados que o digam...não é nada fácil. Amar de forma sacrificial e abnegada, sem esperar nada em troca, devotando sua vida para o bem do outro sem pensar em si mesmo, não é, digamos, moleza! Mas isso considerando a proximidade entre marido e mulher. Agora, pense em dizer isso para aquela pessoa com quem você não só não escolheu passar o resto da vida junto, mas também prefere não passar muito tempo junto.
Quem sabe então poderíamos dizer que amar no amor de Cristo seria amar através de Cristo. Talvez tenha melhorado. Partindo do principio de que não posso amar, mas digo que amo porque Cristo o ama. Mas isso me parece um pouco forçado. É como dizer: “Olha, eu não te suporto, mas como Cristo te ama, eu faço um esforço de dizer que te amo também”. Parece-me um desses jeitinhos brasileiros que damos na fé cristã reduzindo-a levianamente a algo mais ajustável a mediocridade de nossos sentimentos.
Então o que faremos? Como continuar dizendo essas tão profundas palavras sem hipocrisia? Depois de avaliar algumas coisas que aconteceram comigo, creio que cheguei a uma conclusão satisfatória, pelo menos pra mim.
Não sei se isso já aconteceu contigo, mas algumas vezes conheci pessoas que por menos tempo que tivesse de convivência com elas, passei a amá-las de todo coração. É claro que não as conhecia a fundo (talvez isso até tenha ajudado) mas algo nelas pulsava em conformidade com os ritmos do meu coração. É como se tivesse conhecido alguém que tivesse o mesmo sangue que eu, o mesmo pai que eu, e por causa disso uma misteriosa conexão se estabeleceu entre nós. Essas raras eventualidades me mostraram uma coisa. Esse tipo de amor misterioso e sublime que se estabelece com o mínimo relacionamento, não é uma superficialidade hipócrita, mas o misterioso amor da cruz. É o amor que vem de Deus, por meio de Cristo e nos habilita a amarmos aqueles que não conhecemos. E por que? Porque de alguma forma nós nos conhecemos. Conhecemos o Cristo que habita um no outro. Pra mim, “Te amo em Cristo” é o mesmo que dizer: “Eu amo Cristo em você” ou nas palavras de Helio Cunha “Eu amo o que você é por causa de Cristo.”, ou ainda “Eu amo quem você é em Cristo”. Parece-me razoável pensar assim, mesmo porque o amor de Cristo conforme me foi revelado, veio a mim como presente imerecido. Não era digno do seu amor, mas seu amor me torna digno. E ele em mim é o que me torna amável. O que há de melhor em mim é Cristo. Por isso, “Eu amo Cristo em você e amo quem você é em Cristo.”
Creio que este é o ponto de partida para podermos dizer “Te amo através de Cristo” e quem sabe um dia “Te amo como Cristo te ama”.
Mas calma! Um desafio de cada vez.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O melhor jeito de morrer...


Achei esse testemunho de um executor nazista a respeito do pastor alemão Dietrich Bonhoeffer, e achei que vale a pena compartilhar.

Na manhã do dia 6 de abril de 1945, entre as 5 e as 6 horas, os prisioneiros [...] foram retirados de suas células e o julgamento do tribunal de guerra lhes foi comunicado. Pela porta entreaberta de um quarto, no acampamento, eu vi, antes que os condenados fossem despidos, o pastor Bonhoeffer de joelhos diante de seu Deus em uma intensa oração. A maneira perfeitamente submissa e certa de ser atendida com que esse homem extraordinariamente simpático orava me emocionou profundamente. No local da execução, ele orou novamente e depois subiu corajosamente os degraus do patíbulo. A sua morte ocorreu em alguns segundos. Em cinqüenta anos de prática, jamais vi um homem morrer tão completamente nas mãos de Deus.

[Testemunho do médico do campo de concentração nazista Flossenburg, citado em D. Rance. Un siècle de temóins. Paris: Fayard-Le Sarment, 2000]
fonte:www.galilea.com.br

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

E se...


Recentemente tenho pensado um pouco na frágil relação entre nós e Deus. Frágil não somente pela diferença natural existente entre um Deus onisciente, onipotente e onipresente, imaterial, soberano e atemporal e os fragmentos de temporalidade chamados seres humanos, mas também pela complexidade, pra não dizer bagunça, psico-emocional que se revelam nossas iniciativas relacionais.
Basicamente travamos nossos relacionamentos com base em nossos interesses. Tais interesses se agrupam em duas categorias: preservação – aquilo que fazemos para nos mantermos vivos e estáveis, e felicidade – aquilo que agregamos à existência para nos tornarmos mais satisfeitos – como se isso fosse possível!
Esse egocentrismo quase genético, que define essencialmente os padrões de nossos relacionamentos, fragilizam nossas relações com nossos semelhantes, em primeira instância, mas muito mais, nossas relações com Deus.
Primeiramente, nos relacionamos com Deus por questão de autopreservação. Nossa primeira reação de nos atirarmos nos braços da divindade, é quase um reflexo diante da ameaça dos dois grandes inimigos da humanidade, a saber, a morte e o inferno. É diante da apresentação desses dois monstros aterrorizantes que nos propomos a buscar a Deus, afinal, o cenário de um lugar onde se ouve gemidos e ranger de dentes o tempo todo, com temperaturas extremas e paisagem flamejante, não agrada a ninguém. Daí, passamos a um estágio mais evoluído. Descobrimos que Deus não só nos propõe o livramento do inferno, mas também a possibilidade do céu – um lugar paradisíaco, isento de qualquer expressão de dor e maldade, onde a palavra que aparentemente o define é: recompensa.
Enfim, das duas uma. Ou servimos a Deus por medo do inferno, ou servimos a Deus em troca do céu. Alguns poucos, privilegiados, percebem que o que há de mais infernal no inferno é a ausência de Deus e o mais celestial do céu é a plenitude de Deus. E a partir daí constroem um novo tipo de relacionamento com Deus, baseado no amor.
No entanto, há que fazer justiça. Há um caminho a percorrer. Nossas crianças primeiro obedecem por medo da vara, depois pela possibilidade da bicicleta, e só depois, se foi construído um relacionamento suficientemente profundo, obedecem pelo prazer de ver o pai satisfeito. É assim conosco, a graça e a liberdade do amor, parecem fazer sentido somente após a causalidade e restrição da lei. O Deus, legislador moral da antiga aliança é o precursor do Pai de graça abundante da Nova Aliança. Não que o último invalida o primeiro, pelo contrário, o Pai nunca deixa de ser Deus. Mas conhecê-lo como Deus sem conhecê-lo como Pai, nos torna obedientes e moralmente responsáveis, mas priva-nos da verdadeira transformação do amor.
Portanto arrisco a pergunta: E se não houvesse céu? E se não houvesse inferno? Se não houvesse nem ameaças nem propostas, ainda o serviríamos? Essas respostas nos farão entender melhor em que ponto da estrada estamos.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Silêncio


Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus...

Deus está no silêncio. Foi no silêncio do cicio suave que Elias o encontrou. Foi no silêncio da estrebaria que ele se revelou. O silêncio talvez seja a forma mais audível de manifestação de Deus. Dizem que o silêncio é ausência de som. Vazio completo. No entanto o silêncio é o que dá sentido ao som, quem sabe, sua plenitude. São nas pausas que a música encontra seu ritmo, sua cadência. O silêncio é o repouso desejado por todo barulho, é o porto seguro de toda nota musical.
Creio que a vida precisa de silencio. São nas intermitências da existência que a vida encontra sentido. São nas pausas, nos repousos, quando as explicações não são necessárias, as petições se tornam redundantes, as reivindicações parecem inadequadas e o barulho é um estrangeiro, quando as palavras não resolvem e as ações são apenas inquietações, então o silêncio preludia a presença do divino.
Não sabemos nos aquietar, construímos nossas casas no meio do barulho da civilização. Somos viciados no som das buzinas, dos gritos, dos sons das teclas dos computadores, nas freqüências das ondas curtas e das infinitamente longas. Ouvimos a pregação dos martelos que nos urgem a construir. Reagimos ao som dos despertadores que nos advertem a respeito do minuto que passou e não volta mais. Respondemos a perguntas, fazemos as nossas próprias e quando paramos de falar, nossas mentes inquietas prosseguem na argumentação.
Aquietai-vos e sabei, diz o Senhor. A convicção vem quando nos cansamos de argumentar, pedir e perguntar. É o saber do silêncio que nos faz repousar e perceber a virtude e o sentidos dos sons da vida. É quando nossos ouvidos ouvem o nada, que percebemos que nada é tudo o que precisamos quando sabemos quem é Deus.
E então, quando tudo está no devido lugar, podemos de novo nos arriscar a falar...mas nunca por muito tempo.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Mais que Vencedores ou Vencedores Demais

Uma das expressões mais utilizadas pelos cristãos da atualidade para se autodefinirem enquanto povo de Deus é a expressão cunhada pelo apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos: “Somos mais que vencedores”. Essa expressão, que quando compreendida à luz de toda a carta aos Romanos, constitui uma das mais belas declarações da fé cristã, tem sido mal interpretada e mal utilizada como uma espécie de bordão de marketing que na boca de alguns acaba soando carregada de presunção e superioridade.
Dizer que são mais que vencedores, para esses, é assumir uma postura arrogante do alto das plataformas olhando para os reles pecadores como seres inferiores. Agem como seres supra-humanos, que se encontram em uma situação existencial superior ao resto da humanidade. São os que bradam discursos de auto-ajuda, apelam persuasivamente dizendo: “Pare de sofrer!”, e fomentam no povo um desejo pelos bens dessa terra destinados aos “filhos de Deus”.
Essa retórica pseudocristã levou-me a uma reflexão. Existe um perigo muito sutil cerceando cada cristão: o perigo de deixar de ser mais que vencedor, para ser vencedor demais. E pelo que tenho percebido, essa linha é mais fina do que parece.
Os gregos criaram duas propostas que têm servido de paradigma para o pós-cristianismo: o heroísmo e o estoicismo.
O herói, na cultura grega, era um ser que se situava existencialmente entre os deuses e os homens. Era em geral filho de um relacionamento entre um deus e uma mortal, ou vice-versa, e, portanto tinha uma natureza semidivina. Não era um deus, pois estava abaixo deles, mas também não era homem, pois estava acima destes. Essa condição lhes permitia transitar pela esfera da existência humana sem necessariamente se afetar pelas mazelas características da humanidade. Esse padrão se vê também nos heróis modernos como o super-homem. Alguém que circula pela existência humana, ora disfarçado de um reles mortal, ora voando com sua capa vermelha, mas sempre isento das dores que fazem parte da existência na Terra. O que faz do herói um ser supra-humano são suas virtudes especiais, que o possibilita não somente voar acima da miséria como também salvar alguns dos miseráveis.
O estóico, por sua vez, não é por natureza supra-humano. O estoicismo, uma escola de filosofia grega fundada por Zenão de Cítio no século III a.C, pregava um afastamento da vida. O ideal estóico era a insensibilidade, a capacidade de se revelar imperturbável diante das tensões da vida, sejam elas quais fossem. Por meio da racionalização, os estóicos procuravam domesticar suas emoções para que nada na vida lhes parecessem surpreendentes. O estóico ideal era aquele que não se alegrava em exagero e também não sofria em demasia. Diz-se que por meio dessa filosofia alguns conseguiam até mesmo minimizar a sensação da dor física. Não choravam em funerais, não celebravam nas festas, e assim mantinham uma distancia de segurança em relação à vida, distancia essa que lhes assegurava a felicidade.
O que é comum em ambas as propostas, é que tanto o herói quanto o estóico se distanciam da humanidade. Seja pela convicção de suas virtudes superiores, seja pela busca da felicidade, ambos acabam assumindo uma condição paralela à humanidade.
O cristianismo dos vencedores demais segue essa tendência. O cristão herói, consciente das suas virtudes superiores (concedidas pela graça de Deus, é claro!), vivem como super-homens. Constroem seus super-templos onde fazem suas super-campanhas e oferecem suas super-orações aos aflitos e miseráveis. Sobrevoam a humanidade vendo o sofrimento de cima e intervêm heroicamente quando vêem uma criança prestes a ser atropelada por um ônibus. Nunca se afetam pela dor, pois estão em uma condição existencial superior. Eles têm um mundo a salvar, um arqui-inimigo a derrotar e uma imagem a zelar. Mas nunca derramam uma lágrima. De alguma forma, os valores da fraqueza e da vulnerabilidade se perderam nesse cristianismo. Falam da cruz bem rápido, com ligeira vergonha, pois a verdadeira vitória foi a ressurreição. Se alguém pede ajuda, o supercristão estende a mão e ora poderosamente. Interrompe os pedidos de socorro no meio e oferecem logo a solução, para que possam partir rapidamente. Estão sempre com pressa, sempre voando.
O cristão estóico por sua vez é racional. Com uma segura distancia da vida ele a contempla como se estivesse eternamente anestesiado. Diante do choro da viúva, ele racionaliza: “Ele está melhor com o Senhor”, diante da tragédia, ele saca suas verdades teológicas: “Foi da vontade de Deus”, mas se recusa a vivenciar a dor do outro, pois a dor do outro o afundaria na tão desprezível humanidade. O estóico, por vezes se justifica pelas amarguras do passado, explica que seus calos são na verdade proteções adquiridas ao longo dos anos para sobreviver. Não se maravilha com milagres, não se alegra com testemunhos, não se espanta com os mistérios e não reage ao sofrimento. Vive além ou aquém da vida, e nunca derrama uma lágrima.
Quando olhamos para Jesus, vemos como essas propostas pós-cristãs se afastam do cristianismo verdadeiro. Jesus, sendo soberano, poderia assumir justificadamente qualquer uma destas posturas. Afinal, ele sim tinha superpoderes. Andava sobre as águas, multiplicava pães e peixes, realizava sinais e maravilhas e até ressuscitava mortos. Mas longe de ser um herói, que habitaria existencialmente entre Deus e os homens, ele fincou os dois pés na humanidade sem deixar de ser Deus. E isso que lhe permitia não só curar o leproso com o olhar ou com uma palavra mágica, mas tocá-lo para curar não só o seu corpo, mas principalmente sua alma. Isso que lhe permitiu pisar no chão batido do pecado, dividindo o pão com pecadores, sendo tocado por prostitutas. Não foi heróico nem estóico, pois verteu lágrimas. Diante da morte de Lázaro, mesmo sabendo de sua iminente ressurreição, ao perceber a dor de Maria, agita-se no espírito e chora, autenticando sua humanidade. Se fosse herói, faria cessar o choro com um sorriso superior. Se fosse estóico, sacaria uma resposta teológica fazendo os enlutados se envergonharem de sua incredulidade, mas ao invés disso, escolhe chorar. Nada melhor do que as lágrimas para lembrarmo-nos de nossa humanidade. Nada melhor que o choro para nos fazer compreender a dor do outro. Quando nascemos de novo, não nascemos supra-humanos, pelo contrário, voltamos à verdadeira humanidade. Aquela humanidade inicialmente criada por Deus no Éden e que foi desumanizada pelo pecado. Quando somos nascidos de novo, nascem novas lágrimas em nosso olhar. Um choro que surge como uma reação ao desumano. Lágrimas de constante quebrantamento, lágrimas solidárias, lágrimas de Deus vertidas em nossos olhos. Quando olhamos para Jesus, vemos que nada pode ser mais anticristão do que dizer: “Pare de sofrer”, pois sabemos que pisamos no chão da humanidade e damos nossas mãos aos pecadores para que ao chorar com eles, possamos facilitar a cura e a ressurreição entre eles. Afinal, a alegria que vem pela manhã só faz sentido depois do choro que durou toda noite. A bem-aventurança do consolo é destinada somente aos que choram, e são estes que no final terão seus olhos enxugados pelas mãos de Deus.

“E em todas essas coisas, somos mais do que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Rm 8:37).

terça-feira, 3 de junho de 2008

Escala de Cinza

Boa parte das abordagens pastorais evangélicas concentra-se na problemática do pecado. Líderes sinceros preocupam-se em manter santo o seu rebanho na medida em que lutam implacavelmente contra o pecado e o impulso do mal em seus próprios corações. Outros líderes, já não tão sinceros, apontam indevidamente o pecado em seu povo, disfarçados de profetas, esquecendo-se da obscuridade de suas próprias vidas. De uma forma ou de outra, o dilema do fruto proibido ocupa um papel central em nossa espiritualidade.
A compreensão que nos é transmitida tem em geral uma conotação moral. As definições mais clássicas de pecado lidam com as ações que constituem transgressões da lei de Deus, e por isso, são passíveis de punição. Emprestamos a plataforma jurídica para compreender e julgar o pecado sob a perspectiva da moral e da ética. Dessa forma o pecado é visto como algo que vem de fora, ou é evidenciado fora do ser. Ao lidarmos com a questão dessa forma nos sentimos mais seguros em identificar o pecado e suas diversas formas, classificando os comportamentos pecaminosos usando seus pseudônimos: adultério, mentira, assassinato, etc.
Talvez a maior justificativa para esse tipo de abordagem seja a maneira como fazemos a leitura da origem do pecado na Bíblia, bem como da maneira pela qual Deus lidou inicialmente com a questão. Vemos no jardim um ato de transgressão de uma ordem clara de Deus: “Não comerás do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, e logo em seguida uma punição direta: a expulsão do jardim. Para olhares menos cautelosos, parece ser uma questão moral. No entanto, ao avaliarmos a questão sob a perspectiva da mensagem bíblica como um todo, veremos que o pecado não é um problema moral e sim relacional.
Quando a humanidade tomou posse do fruto proibido não estava somente transgredindo uma lei, estava rompendo um relacionamento. Estava rejeitando a Deus como Deus e escolhendo ser deus para si. Ao tomar da árvore do conhecimento do bem e do mal, o homem não estava somente assumindo tal conhecimento, mas estava acima de tudo assumindo para si a prerrogativa de julgar o bem e o mal. Ao deixar de confiar em Deus para tal tarefa, o homem se torna juiz de si mesmo, e a bagunça começa. O pecado então, não se localiza fora do homem, sendo caracterizado por suas ações, mas tem sua raiz no seu próprio coração, sendo fruto da quebra de um relacionamento de amor. Isso complica um pouco mais as coisas. Uma vez que o pecado não é algo que se localiza fora do homem, mas no mais íntimo do seu coração, já não é tão fácil classificá-lo nem mesmo identificá-lo. Quando algo está do lado de fora, temos uma visão panorâmica que nos permite definir, classificar e julgar com certa facilidade. Mas quando se trata de uma questão interior, as coisas nos parecem muito mais ambíguas e nebulosas do que pensamos. O que é preto e branco fora de nós, dentro de nós é uma gigantesca escala de cinza.
“Ainda mais frustrante do que o fato da existência, do poder e da tentação do mal, é o fato de ele florescer disfarçado de bem, que ele pode alimentar-se da vida do santificado. Parece que, neste mundo, o sagrado e o profano não existem separados, mas são misturados, inter-relacionados e confundidos um com o outro. É um mundo em que os ídolos podem ser ricos em beleza, em que a veneração a Deus pode ser tingida pela iniqüidade” (Abraham Joshua Heschel)
Um grande engano ao qual os mais piedosos são expostos é o de lidar com o pecado na arena da moral, combatendo suas expressões mais evidentes, enquanto ele se esconde aconchegado no coração. E no coração, a sede das motivações, o pecado tem o poder de contaminar todas as ações, até mesmo as mais nobres. Uma ação nobre com uma motivação corrompida é mais perigosa do que a ação imoral. Porque esta está patente aos olhos e mais próxima do arrependimento enquanto aquela é refugiada pelo invólucro da aparência de piedade. Separar o santo do profano não é uma tarefa tão fácil assim, quando os dois se misturam na fonte das fontes da vida.

Vale a pena checar a si mesmo, de novo...

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Qual é mesmo sua pergunta?



Tenho procurado observar os vários movimentos eclesiásticos da atualidade. Um dos meus focos de atenção e análise são as campanhas chamadas “evangelísticas” que se tornaram prática comum em boa parte das igrejas pentecostais. Os temas são os mais criativos possíveis, e na maioria das vezes fazem alusão a algum evento do Velho Testamento como a queda das muralhas de Jericó ou a abertura do Mar Vermelho. De uma forma ou de outra, o objetivo é trabalhar com a fé do povo.
A fé sempre foi uma resposta ao longo dos anos. Há algum tempo atrás a fé era uma resposta a uma pergunta: como devemos nos relacionar com Deus? Como podemos conhecê-lo? Como é possível estabelecer algum contato com a divindade? Como posso transcender? À todas essas perguntas a resposta cristã era: pela fé. Bem, a fé continua sendo uma resposta, mas a pergunta sem dúvida mudou. O questionamento hoje respondido é: como posso ser feliz? Como posso viver de modo a conquistar meus sonhos? A resposta continua a mesma: pela fé. O que tem acontecido é que ao ouvir esse novo questionamento proveniente de uma sociedade cada vez mais hedonista, a igreja tem respondido da única forma que conhece. No entanto, vejo que o grande papel a ser desempenhado pela igreja cristã não é simplesmente oferecer a resposta, mas levar as pessoas à pergunta certa.
Não há nada de errado em querer ser feliz. Aliás, seria uma imensa contradição humana pregar a infelicidade. Todas as grandes ações e decisões são de alguma forma motivadas por esse intenso desejo de encontrar essa sensação de plenitude que aprendemos a chamar de felicidade. É em busca dela que algumas pessoas se casam, estudam, trabalham, constituem família, realizam seus empreendimentos e outras matam, roubam, se prostituem e se suicidam. Todas as ações humanas encontram sua origem nessa busca pela felicidade. Porém a felicidade conforme proposta nas Escrituras não é um bem em si mesma. É apenas e tão somente uma conseqüência de um relacionamento com Deus. A Bíblia não nos ensina a buscar a felicidade, ela nos ensina a buscar a Deus. A felicidade se apresenta como uma espécie de efeito colateral dessa relação harmoniosa entre Deus e o homem. Essa inversão, onde fazemos da conseqüência a busca principal, foi resultado do rompimento causado pelo pecado. Deixamos de ter comunhão com Deus e nos tornamos infelizes, mas ao invés de buscar a Deus, passamos a tentar reproduzir artificialmente a sensação de plenitude que somente Ele proporcionava. Foi aí que surgiram os verbos “querer” e “precisar”. Quando nos afastamos daquele que respondia em si mesmo cada uma das necessidades humanas, tivemos nossa vontade corrompida pelo pecado e o vazio existencial se instalou de forma insaciável. Portanto, cada um dos nossos desejos e necessidades, sejam eles autênticos ou ilusórios, são na verdade ecos distantes daquele clamor por Deus. Os que buscam felicidade, ainda que inconscientemente estão procurando Deus. Os que querem soluções imediatas para os seus dilemas, estão na verdade explicitando uma angústia na alma que anseia por Deus. Se oferecemos a fé como uma resposta às aspirações colaterais humanas, privamos os homens de satisfazer sua real necessidade. Se fizermos de Deus apenas uma fonte de recursos, nunca permitiremos que ele nos complete. O salmo 23, tão famoso por suas cenas idílicas como pastos verdejantes, águas de descanso, refrigério da alma, veredas de justiça, mesa preparada diante dos adversários, cabeça ungida com óleo, cálice transbordante, é muito mal interpretado quando observado sob a ótica da busca da felicidade. Davi, o salmista, não está falando das coisas, ele está falando do Pastor. Uma ovelha que tenha pasto, águas e veredas tranqüilas, se não tiver pastor, ainda é ovelha perdida. A grande ênfase não é “nada me faltará”. É “Tu estás comigo”.
Temos que compreender a fé de uma maneira mais relacional. Entendê-la não como uma espécie de cheque em branco assinado por Deus, mas como uma porta de conhecimento da pessoa de Deus. Temos que refazer a pergunta que respondemos com a fé, pois as motivações por trás das ações desviam os destinos. Temos que aprender a ler nas entrelinhas de nossos anseios para perceber que cada um deles é na verdade um anelo por relacionamento com o Pai.
Antes de oferecermos as respostas, talvez nossa abordagem deveria ser: Qual é mesmo sua pergunta?
 

.