terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A Vontade de Deus (parte 2) - Experiência


Continuando a falar sobre a vontade de Deus. Como falamos anteriormente, a vontade de Deus não é uma informação mística sobre o futuro, mas uma característica pessoal de Deus e portanto só pode ser conhecida a partir de um relacionamento pessoal com Ele.
No entanto, um outro problema que temos com essa questão, é precisamente o uso do verbo “conhecer”. Em nosso idioma, esse verbo está associado às informações. O conceito de conhecimento está profundamente ligado ao intelecto, àquilo que aprendemos e assimilamos com uso de nossas faculdades mentais e nossa capacidade de raciocínio. Por isso, nossa interpretação da vontade de Deus está comprometida com as informações que aprendemos a seu respeito ao longo dos anos. Temos a ilusão de que a vontade de Deus pode ser conhecida a medida que nos apropriamos por meio do raciocínio das informações básicas a respeito de Deus que nos capacitem a entendê-lo, bem como seu modo de agir. Sob esse ponto de vista, a Bíblia lança ainda mais obscuridade em relação à essa pretensão humana. “Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor?”, exclama o apóstolo Paulo, “Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.”, exclama o Senhor através do profeta. “Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da que está grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.”, declara o sábio Salomão. Portanto, esse conhecimento intelectualizado, racionalizado e conceitual da vontade de Deus é uma ilusão. E que bom que é assim. Longe de transmitir insegurança, o mistério nos remete à soberania de um Deus que não se sujeita aos limitados meios de compreensão humana. Sendo assim, o verbo conhecer carece de uma redefinição ou uma outra opção. A redefinição pode vir por meio da compreensão da origem da palavra, o grego “gnosko”. A maneira como os gregos utilizam o verbo conhecer, está menos associada ao intelecto e mais associada ao relacionamento. É o conhecer que se obtém por meio da experiência. E a experiência talvez seja o substituto aprovado para a questão da vontade de Deus.
“Para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”, diz o Apóstolo. Segundo Paulo, a vontade de Deus está longe de ser um conceito apropriado por meio de informação, mas é uma experiência que se desenrola em meio a um relacionamento com Deus. A Experiência é mais profunda do que o conhecimento. Conhecer é informação, experimentar é transformação. Conhecer é beber, experimentar é degustar. Conhecer é consumir, experimentar é desfrutar. Conhecer é ouvir, experimentar é interiorizar. Conhecer é voar, experimentar é navegar. A experiência é muito mais intrínseca e por isso mais transformadora. A vontade de Deus não é fria como um conceito, mas é cheia de cores, sabores, texturas e nuances que se desvendam passo a passo, momento após momento, sem pressa. Não é exposta de uma vez, mas é desvendada em um processo cauteloso que não somente instrui, mas molda.
O conhecimento é uma ferramenta de apropriação. O conhecedor se torna possuidor do que é conhecido. A experiência, por sua vez, é maior do que o que a experimenta. Enquanto o conhecedor se apropria do conhecimento, o que experimenta é apropriado pela experiência. Por isso, que a vontade de Deus não é, na maioria das vezes, revelada em sua totalidade em determinado momento. O drama da incerteza é parte da experiência. Não saber é fundamental para experimentar.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Extraordinários


Olá amigos. Peço desculpas pela demora em atualizar o blog. O começo de ano foi bastante intenso em todos os sentidos. Mas voltei à ativa. Recomeço compartilhando uma espécie de cartilha na qual baseamos o acampamento de verão de nossa juventude esse ano, cujo tema foi “Extraordinários”.


O cristianismo em muitos aspectos é visto como uma maneira de domesticar rebeldes. Reduz-se o significado da fé cristã, fazendo dela apenas uma espécie de códigos de boas maneiras para que o “convertido” se torne mais adequado a viver feliz nesse mundo.
Na verdade, a proposta do cristianismo é oposta a essa conceituação. Os cristãos são os rebeldes que se opõe ao “status quo”. Não é objetivo de Deus tornar-nos “bonzinhos”, aplacando nossos ânimos para que tornemo-nos mais felizes nessa vida. Cristianismo é revolução. Revolução que se dá não com armas carnais, mas espirituais. Revolução que ao invés da ira, opera pelo amor. De forma alguma, o cristianismo verdadeiro produzirá um ser humano pacato, imerso em si mesmo, interessado em construir uma vida confortável e estável onde possa envelhecer aguardando a eternidade. O cristianismo, conforme proposto por Jesus Cristo, é poder (grego - dunamis, de dinamite) e sua principal manifestação no homem é um incômodo com o sistema e um intenso desejo de transformá-lo.
O significado literal da palavra extraordinário é “fora do ordinário”, fora do comum. Ordinário é aquilo que se enquadra na “ordem natural das coisas”. Ora, a ordem natural das coisas conforme as conhecemos em nosso mundo, que jaz no maligno, é definida pelo sistema. Ordem é lei pré-estabelecida. Um molde ou formato pelo qual se rege todos os que estão debaixo dela. Ordinário, portanto é todo aquele que se molda e se define a partir dos mesmos padrões do sistema. O ordinário não se salienta, não se destaca, não surpreende o sistema. O ordinário é previsível para o sistema, que consegue antecipar os efeitos de seus paradigmas naquele que a ele se sujeita. O ordinário, por seguir os mesmos valores do sistema, tem um escopo de variação mediana, ou seja, qualquer reação está prevista dentro da mediocridade que o sistema lhe impõe. O ordinário recebe ordens dos veículos do sistema. A mídia sistêmica que dita a moda e o catálogo de novos conceitos e tendências, torna-se seu oráculo. E o mais ardiloso dos estratagemas do sistema é fazer com que aquele que é escravo acredite ser livre pensador. A ordem está tão inerente na consciência do ordinário que este, ainda que manipulado, pensa ser independente e dono de sua consciência.
Portanto, ser extraordinário é estar fora desse molde, fora do formato, fora da pré-disposição mental que define a ordem. Não é simplesmente ser “do contra”, sem nenhuma consideração anterior. É definir-se a partir de outro paradigma. Ser extraordinário não é ser anarquista, modelo no qual não se tem ordem. É pertencer a outra ordem. Não é agir sem lógica, é seguir outra lógica. O extraordinário não se sente à vontade na plataforma em que está inserido porque possui outro formato. Sendo assim, ele só tem duas opções, ou se ausenta da plataforma, ou a transforma. Poderíamos assim pensar que o cristianismo propõe a construção de uma nova plataforma, um novo sistema. Poderíamos talvez, com exceção da palavra “novo”.
Na verdade, a plataforma original tinha outro formato. No Éden as peças tinham o formato de Deus e se encaixavam harmoniosamente umas nas outras. Tanto criação como humanidade cooperavam em uma aliança perene que fazia do cosmos uma expressão da vontade perfeita de Deus. Quando o homem pecou, as peças se deformaram, as alianças se quebraram e o cosmos entrou em colapso, rumo à auto-destruição. O rumo natural a partir de então é o caos. E o novo sistema, agora uma deformação do original, tem a intenção de completar o objetivo de se auto-destruir. Seu fluxo natural leva ao caos. Por paradoxal que pareça, é uma ordem que produz desordem.
Para continuar governando as massas, o sistema dispõe de diversas ferramentas. Entre elas estão a moda, a mídia, a filosofia, a educação, a política, entre outras. No entanto, uma das mais úteis é a religião. É útil e extremamente importante, por causa de uma (dis)função inerente em todo ser humano. Como a plataforma original era divina, ainda que deformada, existe uma programação interior em cada ser humano que evoca a realidade original. Por isso, ainda que de formas impetuosas e descontroladas, cada ser humano clama em seu interior por uma experiência de harmonia com Deus. Isso compromete seriamente as intenções do sistema, portanto, a única maneira de fazer calar essa voz interior, é simular uma plataforma que sugira à consciência humana uma espécie de ligação com o divino. A essa simulação chamamos religião.
A religião não transforma, ela camufla, simula e engana. Ela propõe uma sensação de paz pelo cumprimento de um código de ética e moral, que faça com que aquele que busca a salvação se satisfaça com uma réplica dela. Uma miniatura da plataforma do Éden que proponha uma sensação de encaixe, ainda que tendo um formato diferente do original. Uma mentira próxima da verdade continua sendo mentira, e assim, a religião se torna aliada do sistema na domesticação do espírito humano.
O cristianismo é, portanto, a transformação da plataforma sistêmica. Cada cristão está desgastando por meio de um atrito conceitual e comportamental, as peças do sistema, para que a plataforma original volte a fazer sentido no cosmos. Quando alguém do sistema, entra em contato com essa nova forma, surpreende-se com a exposição a uma realidade superior. Essa surpresa provoca uma transformação da mente, o que os gregos chamavam “metanóia”, que traduzido é o conceito cristão de “arrependimento”. Arrependimento, portanto não é um mero sentimento de pesar em relação a atitudes erradas, é a completa transformação da maneira de pensar e a conclusão de que se está na plataforma errada. É portanto, o caminho para a vida extraordinária.

No entanto, como seres humanos deformados, teriam a possibilidade de compreender sua forma original? Para compreendermos melhor o dilema, façamos uso de uma analogia. Alguém que tenha diante de si o objetivo de montar um quebra-cabeças complexo de várias peças minúsculas, só pode se propor a fazê-lo a partir de um modelo da figura original, quando ainda na sua forma íntegra. Se entendermos a criação original de Deus como a tal figura, a queda foi não só a quebra da figura em numerosos e minúsculos pedaços, mas principalmente a perda do modelo original. Sendo assim, para montar novamente o quebra cabeças só existem duas maneiras, ou obtemos instruções de montagem, ou pedimos ao fabricante um novo modelo. Ora, as instruções, por minuciosas que sejam, tratando-se de um quebra-cabeças tão complexo, tornam-se limitadas e podem no máximo dar uma vaga idéia de como seria o modelo. Aplicando a analogia, as instruções seriam o que entendemos na espiritualidade judaico-cristã como sendo a Lei. Embora ela desse uma noção do que se tratava, ainda não era preciso como o modelo. Assim, o modelo extraordinário da criação original de Deus veio ao mundo. Jesus, o verbo encarnado, era o própria figura original em sua forma íntegra. Portanto, somente tornando-nos semelhantes a ele, faremos sentido novamente.
 

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