terça-feira, 15 de abril de 2008

O Homem e o Monstro


O assassinato da menina Isabella Nardoni, de 5 anos de idade, além de despertar uma revolta tempestuosa na sociedade, suscitou também um antigo debate filosófico-teológico: a origem do mal. É claro que convivemos com as diversas expressões de maldade diariamente, mas, aparentemente, o mal cometido em larga escala, como nas guerras civis da África ou naquilo que aprendemos a categorizar conjuntamente como “violência no Rio de Janeiro” nos parece mais digerível quando comparado a um ato hediondo de jogar uma criança do alto de um edifício. A diferença está no fato de que as expressões de maldade coletivas, embora igualmente absurdas, são justificadas por motivações específicas tais como, conflitos ideológicos, desejo de poder ou até mesmo a desestruturação do sistema econômico social de um país que empurra os marginalizados à violência. Mas como justificar o crime contra uma criança de cinco anos?
A perplexidade é tanta que faz com que jornalistas e psicólogos se voltem para a discussão filosófica da origem do mal. De onde vem esta perversidade monstruosa? Como um ser humano, seja ele quem for, se vê autorizado a exercer sua força para destruir uma criança indefesa? As tentativas de explicação passam por diversas áreas, desde a neurociência até a psicologia. Os cientistas tentam mapear o cérebro em busca do compartimento onde se aloja o comportamento perverso enquanto os psicólogos tentam decompor a psique humana em busca de elementos trágicos na história de alguém para justificar sua psicopatia. E obviamente quando as respostas são escassas, todos acabam empurrando a bomba para os teólogos. Alguém tem que explicar essa deformação absurda.
O fato é que ninguém quer ouvir a explicação. Porque se atentarmos para o que diz as Escrituras, teremos que nos ver no reflexo do perverso.
O primeiro crime hediondo cometido na história da humanidade foi o fratricídio cometido por Caim, no mundo pós-edênico. A monstruosidade ocupa seu papel no drama da humanidade quando o homem se vê desconectado de Deus. E isso me parece bastante óbvio. Se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, ele só pode desfrutar da plenitude de sua humanidade quando ligado a Deus. O que é desumano, como o ato de matar um irmão ou uma criança, acontece a partir da ruptura do relacionamento com Deus. Embora haja objeções ao uso do pecado como justificativa do mal, por ser uma explicação “religiosa”, é a única que realmente faz sentido. O mal é uma escolha. Antes de assassinar Abel, Caim recebe uma advertência divina: “eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.” O mal aparece na história da (des)humanidade como uma conseqüência direta da escolha do pecado. E aqui está a dificuldade. Pecado não é um ato, é um estado de rebelião. O ato é somente um desdobramento da escolha que fizemos enquanto raça. Portanto o mesmo estado de rebelião que produz em alguns a mentira, o adultério, o furto, o ódio, produz em outro o comportamento homicida. Embora um pareça mais monstruoso que o outro, os dois têm a mesma procedência. O monstro que matou a criança vive silenciosamente disfarçado em cada um dos que agora clamam por justiça. Basta dizer que nem precisamos de provas para desejar vingança. Basta que soltem os suspeitos nas ruas indefesos e outros monstros despertarão do sono e insurgirão com ódio contra ele.
Realmente, casos como os da pequena Isabella revelam a monstruosidade. No entanto, o mais assustador é que ao mesmo tempo em que vejo a monstruosidade do assassino, contemplo a contragosto o monstro dentro de mim.
É por isso que a resposta cristã não agrada. Porque a única solução é matar o monstro, e isso a Bíblia chama de “morrer para si”.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Vitória, só se for assim!

Certo dia, uma pedra clamou...


Olha lá quem vem do lado oposto
E vem sem gosto de viver
Olha lá que os bravos são escravos
Sãos e salvos de sofrer
Olha lá quem acha que perder
É ser menor na vida
Olha lá quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar

(Los Hermanos, O vencedor)

O discurso dos “vencedores demais” tem sido delatado e confrontado pelos meros humanos – “por los meros hermanos”. Seja no meio evangélico ou secular, se é que a linha divisória ainda não se apagou, os apáticos ao sofrimento estão sendo descobertos e rejeitados. Pouco a pouco, o discurso do “pare de sofrer” vai sendo desmascarado pela realidade sofrível de nossos dias, e aqueles que antes buscavam “vitória”, começam a sonhar com consolo. Será que temos algo a oferecer, além das teologias, filosofias e discursos desprovidos de amor? Será que encontraremos uns aos outros, uns nos olhos dos outros, respondendo com o silêncio curador ao invés das respostas pré-fabricadas da religião?
Temos que dar razão ao poeta, quem sempre quer vitória perde a glória de chorar. Quem vive são e salvo de sofrer, vem sem gosto de viver. Lembremo-nos de que nosso Vencedor, abraçou a cruz. Antes de ressuscitar o amigo Lázaro, chorou. E ao curar o pobre leproso não se contentou em dar-lhe uma palavra, tocou suas feridas para que não só o corpo, mas a alma também fosse sanada.
Estou com o poeta, não quero ser vencedor do jeito dos bravos. Quero vencer do jeito de Jesus. Vencer chorando. Sendo mais sem deixar de ser humano. Alegrar-me sem virar as costas para a dor. Subir no pódio, mas sem deixar de me prostrar.

Vitória, só se for assim.

quarta-feira, 19 de março de 2008

A sabedoria de não saber


Desde o iluminismo, movimento intelectual proeminente no início do século XVIII, a razão tem sido celebrada como a mais importante das faculdades humanas. Essa celebração é justificada pelos resultados, tais como: aprimoramento da educação, desenvolvimento científico e tecnológico, avanço da medicina, e outras coisas mais, tudo alcançado pela sede de conhecimento do homem que um dia ficou insatisfeito com a própria ignorância. No entanto, um contraponto desse racionalismo todo é o fato de que uma vez que sentiu a sensação de poder que o conhecimento proporciona, o homem se recusou a não saber. Tudo carece de explicação, pois o cérebro humano se consolidou como o instrumento absoluto do saber. A dimensão do mistério foi ignorada e tudo se resumiu ao universo concreto que está ao redor da humanidade.
Essa pretensão atinge até mesmo a espiritualidade. Quando nos deparamos com algo que não entendemos, nos recusamos a permanecer no estágio da ignorância e exigimos explicações celestiais. E aí surgem as conjecturas que nem sempre são inofensivas. Ao passar por uma experiência de sofrimento, cheguei a um questionamento. O que Deus está fazendo? A partir dessa pergunta me surgiram três possibilidades:
Ele está fazendo tudo. Ele é responsável por absolutamente todos os detalhes do meu sofrimento, arquitetando cada peça do complexo emaranhado em que estou vivendo.
Ele não está fazendo nada. Deus não é responsável por minhas dores, nem tampouco tem qualquer participação nisso. Ele não produziu nem permitiu absolutamente nada. Simplesmente aconteceu.
Ele está fazendo alguma coisa que eu não entendo. Deus está agindo em minha história e contempla de alguma forma meu sofrimento. Algo em mim está em evidente transformação, mas não consigo de forma alguma compreender os processos de envolvimento de Deus em meus dilemas.
Preferi a terceira alternativa. E descobri isso em oração. Depois de inquirir a Deus por horas, sem obter resposta alguma, continuei navegando no mistério, sem entender absolutamente nada, mas com a certeza de que depois de passar por tudo aquilo tendo Deus ao meu lado, algo em mim havia mudado. Ainda não tenho explicações, mas sei que sou outro. Creio que foi essa a sensação de Jó, que sem obter resposta alguma acerca de seu sofrimento, diz: “Falei do que não sabia” e chega à bela conclusão: “Agora meus olhos te vêem”.
Para os racionalistas de plantão essa resposta não é aceitável. Aparentemente, a mente humana evoluiu tanto que não consegue conviver com o mistério. Sabemos tanto que exigimos que Deus se explique. Mas que sabedoria é essa, que mesmo sendo constantemente desafiada pelo infinito não se rende? Que mesmo contemplando os astros no céu e a grandeza do universo, não é sábia suficiente para reconhecer que existem dimensões onde a lógica humana não se aplica?
Sinto-me confortável em não saber. Sinto-me seguro em não entender tudo. Alegro-me no mistério. Deleito-me nessa ignorância. Porque se entendesse tudo, estaria acima de Deus, ou pelo menos no mesmo nível que ele, e então, não teria a quem recorrer.
Os pós-iluministas que me chamem de covarde, eu chamo isso de fé.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A Vontade de Deus (parte 2) - Experiência


Continuando a falar sobre a vontade de Deus. Como falamos anteriormente, a vontade de Deus não é uma informação mística sobre o futuro, mas uma característica pessoal de Deus e portanto só pode ser conhecida a partir de um relacionamento pessoal com Ele.
No entanto, um outro problema que temos com essa questão, é precisamente o uso do verbo “conhecer”. Em nosso idioma, esse verbo está associado às informações. O conceito de conhecimento está profundamente ligado ao intelecto, àquilo que aprendemos e assimilamos com uso de nossas faculdades mentais e nossa capacidade de raciocínio. Por isso, nossa interpretação da vontade de Deus está comprometida com as informações que aprendemos a seu respeito ao longo dos anos. Temos a ilusão de que a vontade de Deus pode ser conhecida a medida que nos apropriamos por meio do raciocínio das informações básicas a respeito de Deus que nos capacitem a entendê-lo, bem como seu modo de agir. Sob esse ponto de vista, a Bíblia lança ainda mais obscuridade em relação à essa pretensão humana. “Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor?”, exclama o apóstolo Paulo, “Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.”, exclama o Senhor através do profeta. “Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da que está grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.”, declara o sábio Salomão. Portanto, esse conhecimento intelectualizado, racionalizado e conceitual da vontade de Deus é uma ilusão. E que bom que é assim. Longe de transmitir insegurança, o mistério nos remete à soberania de um Deus que não se sujeita aos limitados meios de compreensão humana. Sendo assim, o verbo conhecer carece de uma redefinição ou uma outra opção. A redefinição pode vir por meio da compreensão da origem da palavra, o grego “gnosko”. A maneira como os gregos utilizam o verbo conhecer, está menos associada ao intelecto e mais associada ao relacionamento. É o conhecer que se obtém por meio da experiência. E a experiência talvez seja o substituto aprovado para a questão da vontade de Deus.
“Para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”, diz o Apóstolo. Segundo Paulo, a vontade de Deus está longe de ser um conceito apropriado por meio de informação, mas é uma experiência que se desenrola em meio a um relacionamento com Deus. A Experiência é mais profunda do que o conhecimento. Conhecer é informação, experimentar é transformação. Conhecer é beber, experimentar é degustar. Conhecer é consumir, experimentar é desfrutar. Conhecer é ouvir, experimentar é interiorizar. Conhecer é voar, experimentar é navegar. A experiência é muito mais intrínseca e por isso mais transformadora. A vontade de Deus não é fria como um conceito, mas é cheia de cores, sabores, texturas e nuances que se desvendam passo a passo, momento após momento, sem pressa. Não é exposta de uma vez, mas é desvendada em um processo cauteloso que não somente instrui, mas molda.
O conhecimento é uma ferramenta de apropriação. O conhecedor se torna possuidor do que é conhecido. A experiência, por sua vez, é maior do que o que a experimenta. Enquanto o conhecedor se apropria do conhecimento, o que experimenta é apropriado pela experiência. Por isso, que a vontade de Deus não é, na maioria das vezes, revelada em sua totalidade em determinado momento. O drama da incerteza é parte da experiência. Não saber é fundamental para experimentar.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Extraordinários


Olá amigos. Peço desculpas pela demora em atualizar o blog. O começo de ano foi bastante intenso em todos os sentidos. Mas voltei à ativa. Recomeço compartilhando uma espécie de cartilha na qual baseamos o acampamento de verão de nossa juventude esse ano, cujo tema foi “Extraordinários”.


O cristianismo em muitos aspectos é visto como uma maneira de domesticar rebeldes. Reduz-se o significado da fé cristã, fazendo dela apenas uma espécie de códigos de boas maneiras para que o “convertido” se torne mais adequado a viver feliz nesse mundo.
Na verdade, a proposta do cristianismo é oposta a essa conceituação. Os cristãos são os rebeldes que se opõe ao “status quo”. Não é objetivo de Deus tornar-nos “bonzinhos”, aplacando nossos ânimos para que tornemo-nos mais felizes nessa vida. Cristianismo é revolução. Revolução que se dá não com armas carnais, mas espirituais. Revolução que ao invés da ira, opera pelo amor. De forma alguma, o cristianismo verdadeiro produzirá um ser humano pacato, imerso em si mesmo, interessado em construir uma vida confortável e estável onde possa envelhecer aguardando a eternidade. O cristianismo, conforme proposto por Jesus Cristo, é poder (grego - dunamis, de dinamite) e sua principal manifestação no homem é um incômodo com o sistema e um intenso desejo de transformá-lo.
O significado literal da palavra extraordinário é “fora do ordinário”, fora do comum. Ordinário é aquilo que se enquadra na “ordem natural das coisas”. Ora, a ordem natural das coisas conforme as conhecemos em nosso mundo, que jaz no maligno, é definida pelo sistema. Ordem é lei pré-estabelecida. Um molde ou formato pelo qual se rege todos os que estão debaixo dela. Ordinário, portanto é todo aquele que se molda e se define a partir dos mesmos padrões do sistema. O ordinário não se salienta, não se destaca, não surpreende o sistema. O ordinário é previsível para o sistema, que consegue antecipar os efeitos de seus paradigmas naquele que a ele se sujeita. O ordinário, por seguir os mesmos valores do sistema, tem um escopo de variação mediana, ou seja, qualquer reação está prevista dentro da mediocridade que o sistema lhe impõe. O ordinário recebe ordens dos veículos do sistema. A mídia sistêmica que dita a moda e o catálogo de novos conceitos e tendências, torna-se seu oráculo. E o mais ardiloso dos estratagemas do sistema é fazer com que aquele que é escravo acredite ser livre pensador. A ordem está tão inerente na consciência do ordinário que este, ainda que manipulado, pensa ser independente e dono de sua consciência.
Portanto, ser extraordinário é estar fora desse molde, fora do formato, fora da pré-disposição mental que define a ordem. Não é simplesmente ser “do contra”, sem nenhuma consideração anterior. É definir-se a partir de outro paradigma. Ser extraordinário não é ser anarquista, modelo no qual não se tem ordem. É pertencer a outra ordem. Não é agir sem lógica, é seguir outra lógica. O extraordinário não se sente à vontade na plataforma em que está inserido porque possui outro formato. Sendo assim, ele só tem duas opções, ou se ausenta da plataforma, ou a transforma. Poderíamos assim pensar que o cristianismo propõe a construção de uma nova plataforma, um novo sistema. Poderíamos talvez, com exceção da palavra “novo”.
Na verdade, a plataforma original tinha outro formato. No Éden as peças tinham o formato de Deus e se encaixavam harmoniosamente umas nas outras. Tanto criação como humanidade cooperavam em uma aliança perene que fazia do cosmos uma expressão da vontade perfeita de Deus. Quando o homem pecou, as peças se deformaram, as alianças se quebraram e o cosmos entrou em colapso, rumo à auto-destruição. O rumo natural a partir de então é o caos. E o novo sistema, agora uma deformação do original, tem a intenção de completar o objetivo de se auto-destruir. Seu fluxo natural leva ao caos. Por paradoxal que pareça, é uma ordem que produz desordem.
Para continuar governando as massas, o sistema dispõe de diversas ferramentas. Entre elas estão a moda, a mídia, a filosofia, a educação, a política, entre outras. No entanto, uma das mais úteis é a religião. É útil e extremamente importante, por causa de uma (dis)função inerente em todo ser humano. Como a plataforma original era divina, ainda que deformada, existe uma programação interior em cada ser humano que evoca a realidade original. Por isso, ainda que de formas impetuosas e descontroladas, cada ser humano clama em seu interior por uma experiência de harmonia com Deus. Isso compromete seriamente as intenções do sistema, portanto, a única maneira de fazer calar essa voz interior, é simular uma plataforma que sugira à consciência humana uma espécie de ligação com o divino. A essa simulação chamamos religião.
A religião não transforma, ela camufla, simula e engana. Ela propõe uma sensação de paz pelo cumprimento de um código de ética e moral, que faça com que aquele que busca a salvação se satisfaça com uma réplica dela. Uma miniatura da plataforma do Éden que proponha uma sensação de encaixe, ainda que tendo um formato diferente do original. Uma mentira próxima da verdade continua sendo mentira, e assim, a religião se torna aliada do sistema na domesticação do espírito humano.
O cristianismo é, portanto, a transformação da plataforma sistêmica. Cada cristão está desgastando por meio de um atrito conceitual e comportamental, as peças do sistema, para que a plataforma original volte a fazer sentido no cosmos. Quando alguém do sistema, entra em contato com essa nova forma, surpreende-se com a exposição a uma realidade superior. Essa surpresa provoca uma transformação da mente, o que os gregos chamavam “metanóia”, que traduzido é o conceito cristão de “arrependimento”. Arrependimento, portanto não é um mero sentimento de pesar em relação a atitudes erradas, é a completa transformação da maneira de pensar e a conclusão de que se está na plataforma errada. É portanto, o caminho para a vida extraordinária.

No entanto, como seres humanos deformados, teriam a possibilidade de compreender sua forma original? Para compreendermos melhor o dilema, façamos uso de uma analogia. Alguém que tenha diante de si o objetivo de montar um quebra-cabeças complexo de várias peças minúsculas, só pode se propor a fazê-lo a partir de um modelo da figura original, quando ainda na sua forma íntegra. Se entendermos a criação original de Deus como a tal figura, a queda foi não só a quebra da figura em numerosos e minúsculos pedaços, mas principalmente a perda do modelo original. Sendo assim, para montar novamente o quebra cabeças só existem duas maneiras, ou obtemos instruções de montagem, ou pedimos ao fabricante um novo modelo. Ora, as instruções, por minuciosas que sejam, tratando-se de um quebra-cabeças tão complexo, tornam-se limitadas e podem no máximo dar uma vaga idéia de como seria o modelo. Aplicando a analogia, as instruções seriam o que entendemos na espiritualidade judaico-cristã como sendo a Lei. Embora ela desse uma noção do que se tratava, ainda não era preciso como o modelo. Assim, o modelo extraordinário da criação original de Deus veio ao mundo. Jesus, o verbo encarnado, era o própria figura original em sua forma íntegra. Portanto, somente tornando-nos semelhantes a ele, faremos sentido novamente.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A vontade de Deus (parte 1)


Um dos temas mais controversos na espiritualidade cristã é o mistério da vontade de Deus. A partir do momento que nos convertemos, passamos a buscar aquilo que as Escrituras denominam como sendo a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Nossas motivações para buscá-la são as mais variadas possíveis. Em um certo nível de devoção e sinceridade, queremos agradar a Deus. Conhecer sua vontade para chegar a um nível de intimidade mais profunda com ele. Mas não raras vezes nossas motivações se mostram um pouco mais egoístas. Desejamos dar uma olhadela no futuro, para podermos ser bem sucedidos em nossos empreendimentos e decisões. Quando assim agimos, nos relacionamos com Deus como se ele, ao invés de pessoa, fosse uma espécie de oráculo que, estando acima do tempo, pode nos fornecer as orientações necessárias para um futuro estável.
Na maioria das vezes, nossa mente cartesiana procura uma bula de remédios, com todas as informações possíveis a respeito do futuro, incluindo os efeitos colaterais de nossas possíveis decisões. Desejamos saber onde estaremos ou quem seremos em dez, vinte ou trinta anos.
No entanto, tenho aprendido que a vontade de Deus é antes de mais nada uma manifestação de sua pessoalidade. A vontade de Deus é expressão do próprio ser do Deus-pessoa que se envolve de forma relacional com seus filhos e não somente informações místicas que nos concedam garantias contra possíveis erros no futuro.
Existem duas maneiras de conhecer a vontade de uma pessoa: a via dos estranhos e a via dos íntimos. Na via dos estranhos, alguém que nunca tenha me conhecido, para obter minha opinião a respeito de determinado assunto deve fazer-me uma pergunta específica e direta. Tal pergunta irá extrair de mim uma resposta informativa, desassociada de relacionamento significativo. Na via dos íntimos, por outro lado, o conhecimento de minha vontade é simplesmente uma extensão do conhecimento da minha pessoa. Exemplificando. Alguém que queira servir-me um jantar com o objetivo de me agradar terá que me perguntar a respeito de meus gostos. Já minha esposa não. Convivendo por tantos anos comigo, ela pode dizer sem pensar quais os ingredientes que aprecio e os que rejeito. O mesmo se dá em relação a questões mais sérias, quanto mais sou conhecido como pessoa, mais são reveladas minha vontade e minhas opiniões a respeito de diversos assuntos.
A vontade de Deus é, da mesma forma, melhor desfrutada à medida que desejo conhecê-lo e não somente extrair dele informações. Sua vontade é um dos alicerces sob os quais se constrói um relacionamento com Ele. Mas ainda existe um paradoxo. Se o propósito de Deus é se relacionar conosco de forma pessoal e não só agir como um atendente de posto de informações, ele pode usar de vários métodos para atrair-nos até ele, até mesmo ocultar momentaneamente sua vontade ou revelá-la aos poucos. Assim sendo, é possível que para realizar a vontade de Deus, tenhamos que em alguns momentos desconhecê-la, para que intuitiva e cuidadosamente possamos nos entregar a Deus, como alguém que, de olhos vendados, confia naquele que o guia, e assim conhecê-lo melhor.
Portanto, a melhor forma de conhecer a vontade de Deus é preocupar-se em conhecer o próprio Deus, pois sua vontade é expressão do seu ser.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Estranha Espiritualidade (Parte 2) – A Guerra


Seja pelas antigas referencias bélicas de Israel ou pelas modernas colocações da teologia da Batalha Espiritual, a igreja evangélica sempre fez uso do cenário da guerra para exemplificar suas práticas e convicções. “Estamos em guerra contra o inferno”, esbravejam alguns. “Nosso general é Cristo”, celebram outros. Parecemos compreender perfeitamente que nossa luta é contra principados e potestades que governam esse mundo tenebroso. Alguns até exageram da metáfora, estabelecendo planos estratégicos concebidos a partir dos planos de guerra mais elaborados. No entanto, ao que me parece, nossas visões da guerra não são das mais nobres. Como espectadores da guerra que somos, acostumados a assistir os confrontos bélicos ao vivo da segurança de nossas salas de tv, ignoramos o que há de mais nobre no coração do soldado. Nunca fui pra guerra, mas o pouco que li a respeito dos bastidores das batalhas, me revelou um lado que deveríamos conhecer melhor.
As motivações por trás das mãos que impunham os rifles nos campos de batalha são as mais variadas possíveis. Alguns guerreiam por ódio, por sede de vingança, por um rancor que se perpetua através das gerações. Alguns sem motivo pessoal, apenas em cumprimento de seu dever, oferecendo sua vida em obediência a um recrutamento da pátria enquanto os estrategistas engravatados se aninham em poltronas confortáveis. Mas uma pequena parcela, embora se encontre no cenário onde a maldade humana mais se evidencia, consegue encontrar dentro de seus corações, motivações nobres que produzem no meio da insensatez da guerra, um honroso senso de valor. São duas essas motivações: idealismo e companheirismo.
Ainda há quem lute por um ideal. Ainda existem os que guerreiam contra a injustiça, contra a maldade e contra a tirania. No meio dos tiros movidos pelo ódio, ainda há os que crêem em ideais e valores pelos quais estão dispostos a entregar a vida. Soldados que não estão lutando contra alguém, mas em favor de algo maior que o ódio. Que não só atiram, mas se atiram, com toda integridade, esperando que seus sacrifícios regados a sangue produzam algum fruto digno. Ainda existem idealistas, esbravejando contra os exploradores da humanidade, crendo que seus atos e palavras podem mudar o mundo. Muitos, mal informados e mal formados, lutam por ideais vazios e puramente humanos, que mais cedo ou mais tarde se mostram frustrantes, mas se existe algum valor nesses ideais que os elevaram a um patamar acima das meras idéias, é o fato de ter gente valorosa disposta a viver e morrer por eles. O idealismo talvez não justifique a guerra, mas certamente é a matéria prima do heroísmo.
Mas ainda mais nobre que o idealismo, é o companheirismo. O fato de que cada soldado em uma trincheira, luta pelo companheiro ao seu lado. Talvez porque o companheiro ao lado seja a primeira e mais próxima referência da pátria. Ali, na mesma trincheira estão com ele sua esposa, seus filhos, seus pais e amigos, todos representados pelo soldado que depende dele para viver. Cada soldado leva para o front todos os seus, e quando isso se percebe, cria-se uma comunidade onde a vida do próximo vale mais do que a sua própria. Ali, não se luta contra alguém e nem em favor de algo, mas com e por alguém. E o tiro que atinge um atinge a todos.
Talvez nós como Igreja, devêssemos rever nossas motivações ao guerrear. Talvez ao invés de focar tanto no inimigo, devêssemos pensar um pouco mais no Reino, no Ideal e no próximo. Deveríamos ter a consciência que antes de lutarmos contra o diabo, estamos marchando por valores mais nobres do que a guerra em si. Ao empunharmos nossas espadas, deveríamos ser dirigidos pelo anseio de ver a paz. Deveríamos lutar olhando para os que estão conosco nas trincheiras, e não ferir os que estão no mesmo batalhão por inveja ou partidarismo. Nossas guerras deveriam ser mais nobres, mais significativas. Porque só assim seriam justificáveis. O paradoxo da batalha espiritual, é que nosso inimigo é vencido enquanto cresce em nós o amor. A maior evidência de nossa força, não são os despojos conquistados enquanto lutamos e sim o Reino que defendemos e as pessoas que protegemos. Aí sim, a guerra se torna espiritual, não só porque os inimigos são invisíveis, mas porque os valores são eternos.
 

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