terça-feira, 24 de junho de 2008

Mais que Vencedores ou Vencedores Demais

Uma das expressões mais utilizadas pelos cristãos da atualidade para se autodefinirem enquanto povo de Deus é a expressão cunhada pelo apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos: “Somos mais que vencedores”. Essa expressão, que quando compreendida à luz de toda a carta aos Romanos, constitui uma das mais belas declarações da fé cristã, tem sido mal interpretada e mal utilizada como uma espécie de bordão de marketing que na boca de alguns acaba soando carregada de presunção e superioridade.
Dizer que são mais que vencedores, para esses, é assumir uma postura arrogante do alto das plataformas olhando para os reles pecadores como seres inferiores. Agem como seres supra-humanos, que se encontram em uma situação existencial superior ao resto da humanidade. São os que bradam discursos de auto-ajuda, apelam persuasivamente dizendo: “Pare de sofrer!”, e fomentam no povo um desejo pelos bens dessa terra destinados aos “filhos de Deus”.
Essa retórica pseudocristã levou-me a uma reflexão. Existe um perigo muito sutil cerceando cada cristão: o perigo de deixar de ser mais que vencedor, para ser vencedor demais. E pelo que tenho percebido, essa linha é mais fina do que parece.
Os gregos criaram duas propostas que têm servido de paradigma para o pós-cristianismo: o heroísmo e o estoicismo.
O herói, na cultura grega, era um ser que se situava existencialmente entre os deuses e os homens. Era em geral filho de um relacionamento entre um deus e uma mortal, ou vice-versa, e, portanto tinha uma natureza semidivina. Não era um deus, pois estava abaixo deles, mas também não era homem, pois estava acima destes. Essa condição lhes permitia transitar pela esfera da existência humana sem necessariamente se afetar pelas mazelas características da humanidade. Esse padrão se vê também nos heróis modernos como o super-homem. Alguém que circula pela existência humana, ora disfarçado de um reles mortal, ora voando com sua capa vermelha, mas sempre isento das dores que fazem parte da existência na Terra. O que faz do herói um ser supra-humano são suas virtudes especiais, que o possibilita não somente voar acima da miséria como também salvar alguns dos miseráveis.
O estóico, por sua vez, não é por natureza supra-humano. O estoicismo, uma escola de filosofia grega fundada por Zenão de Cítio no século III a.C, pregava um afastamento da vida. O ideal estóico era a insensibilidade, a capacidade de se revelar imperturbável diante das tensões da vida, sejam elas quais fossem. Por meio da racionalização, os estóicos procuravam domesticar suas emoções para que nada na vida lhes parecessem surpreendentes. O estóico ideal era aquele que não se alegrava em exagero e também não sofria em demasia. Diz-se que por meio dessa filosofia alguns conseguiam até mesmo minimizar a sensação da dor física. Não choravam em funerais, não celebravam nas festas, e assim mantinham uma distancia de segurança em relação à vida, distancia essa que lhes assegurava a felicidade.
O que é comum em ambas as propostas, é que tanto o herói quanto o estóico se distanciam da humanidade. Seja pela convicção de suas virtudes superiores, seja pela busca da felicidade, ambos acabam assumindo uma condição paralela à humanidade.
O cristianismo dos vencedores demais segue essa tendência. O cristão herói, consciente das suas virtudes superiores (concedidas pela graça de Deus, é claro!), vivem como super-homens. Constroem seus super-templos onde fazem suas super-campanhas e oferecem suas super-orações aos aflitos e miseráveis. Sobrevoam a humanidade vendo o sofrimento de cima e intervêm heroicamente quando vêem uma criança prestes a ser atropelada por um ônibus. Nunca se afetam pela dor, pois estão em uma condição existencial superior. Eles têm um mundo a salvar, um arqui-inimigo a derrotar e uma imagem a zelar. Mas nunca derramam uma lágrima. De alguma forma, os valores da fraqueza e da vulnerabilidade se perderam nesse cristianismo. Falam da cruz bem rápido, com ligeira vergonha, pois a verdadeira vitória foi a ressurreição. Se alguém pede ajuda, o supercristão estende a mão e ora poderosamente. Interrompe os pedidos de socorro no meio e oferecem logo a solução, para que possam partir rapidamente. Estão sempre com pressa, sempre voando.
O cristão estóico por sua vez é racional. Com uma segura distancia da vida ele a contempla como se estivesse eternamente anestesiado. Diante do choro da viúva, ele racionaliza: “Ele está melhor com o Senhor”, diante da tragédia, ele saca suas verdades teológicas: “Foi da vontade de Deus”, mas se recusa a vivenciar a dor do outro, pois a dor do outro o afundaria na tão desprezível humanidade. O estóico, por vezes se justifica pelas amarguras do passado, explica que seus calos são na verdade proteções adquiridas ao longo dos anos para sobreviver. Não se maravilha com milagres, não se alegra com testemunhos, não se espanta com os mistérios e não reage ao sofrimento. Vive além ou aquém da vida, e nunca derrama uma lágrima.
Quando olhamos para Jesus, vemos como essas propostas pós-cristãs se afastam do cristianismo verdadeiro. Jesus, sendo soberano, poderia assumir justificadamente qualquer uma destas posturas. Afinal, ele sim tinha superpoderes. Andava sobre as águas, multiplicava pães e peixes, realizava sinais e maravilhas e até ressuscitava mortos. Mas longe de ser um herói, que habitaria existencialmente entre Deus e os homens, ele fincou os dois pés na humanidade sem deixar de ser Deus. E isso que lhe permitia não só curar o leproso com o olhar ou com uma palavra mágica, mas tocá-lo para curar não só o seu corpo, mas principalmente sua alma. Isso que lhe permitiu pisar no chão batido do pecado, dividindo o pão com pecadores, sendo tocado por prostitutas. Não foi heróico nem estóico, pois verteu lágrimas. Diante da morte de Lázaro, mesmo sabendo de sua iminente ressurreição, ao perceber a dor de Maria, agita-se no espírito e chora, autenticando sua humanidade. Se fosse herói, faria cessar o choro com um sorriso superior. Se fosse estóico, sacaria uma resposta teológica fazendo os enlutados se envergonharem de sua incredulidade, mas ao invés disso, escolhe chorar. Nada melhor do que as lágrimas para lembrarmo-nos de nossa humanidade. Nada melhor que o choro para nos fazer compreender a dor do outro. Quando nascemos de novo, não nascemos supra-humanos, pelo contrário, voltamos à verdadeira humanidade. Aquela humanidade inicialmente criada por Deus no Éden e que foi desumanizada pelo pecado. Quando somos nascidos de novo, nascem novas lágrimas em nosso olhar. Um choro que surge como uma reação ao desumano. Lágrimas de constante quebrantamento, lágrimas solidárias, lágrimas de Deus vertidas em nossos olhos. Quando olhamos para Jesus, vemos que nada pode ser mais anticristão do que dizer: “Pare de sofrer”, pois sabemos que pisamos no chão da humanidade e damos nossas mãos aos pecadores para que ao chorar com eles, possamos facilitar a cura e a ressurreição entre eles. Afinal, a alegria que vem pela manhã só faz sentido depois do choro que durou toda noite. A bem-aventurança do consolo é destinada somente aos que choram, e são estes que no final terão seus olhos enxugados pelas mãos de Deus.

“E em todas essas coisas, somos mais do que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Rm 8:37).

terça-feira, 3 de junho de 2008

Escala de Cinza

Boa parte das abordagens pastorais evangélicas concentra-se na problemática do pecado. Líderes sinceros preocupam-se em manter santo o seu rebanho na medida em que lutam implacavelmente contra o pecado e o impulso do mal em seus próprios corações. Outros líderes, já não tão sinceros, apontam indevidamente o pecado em seu povo, disfarçados de profetas, esquecendo-se da obscuridade de suas próprias vidas. De uma forma ou de outra, o dilema do fruto proibido ocupa um papel central em nossa espiritualidade.
A compreensão que nos é transmitida tem em geral uma conotação moral. As definições mais clássicas de pecado lidam com as ações que constituem transgressões da lei de Deus, e por isso, são passíveis de punição. Emprestamos a plataforma jurídica para compreender e julgar o pecado sob a perspectiva da moral e da ética. Dessa forma o pecado é visto como algo que vem de fora, ou é evidenciado fora do ser. Ao lidarmos com a questão dessa forma nos sentimos mais seguros em identificar o pecado e suas diversas formas, classificando os comportamentos pecaminosos usando seus pseudônimos: adultério, mentira, assassinato, etc.
Talvez a maior justificativa para esse tipo de abordagem seja a maneira como fazemos a leitura da origem do pecado na Bíblia, bem como da maneira pela qual Deus lidou inicialmente com a questão. Vemos no jardim um ato de transgressão de uma ordem clara de Deus: “Não comerás do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, e logo em seguida uma punição direta: a expulsão do jardim. Para olhares menos cautelosos, parece ser uma questão moral. No entanto, ao avaliarmos a questão sob a perspectiva da mensagem bíblica como um todo, veremos que o pecado não é um problema moral e sim relacional.
Quando a humanidade tomou posse do fruto proibido não estava somente transgredindo uma lei, estava rompendo um relacionamento. Estava rejeitando a Deus como Deus e escolhendo ser deus para si. Ao tomar da árvore do conhecimento do bem e do mal, o homem não estava somente assumindo tal conhecimento, mas estava acima de tudo assumindo para si a prerrogativa de julgar o bem e o mal. Ao deixar de confiar em Deus para tal tarefa, o homem se torna juiz de si mesmo, e a bagunça começa. O pecado então, não se localiza fora do homem, sendo caracterizado por suas ações, mas tem sua raiz no seu próprio coração, sendo fruto da quebra de um relacionamento de amor. Isso complica um pouco mais as coisas. Uma vez que o pecado não é algo que se localiza fora do homem, mas no mais íntimo do seu coração, já não é tão fácil classificá-lo nem mesmo identificá-lo. Quando algo está do lado de fora, temos uma visão panorâmica que nos permite definir, classificar e julgar com certa facilidade. Mas quando se trata de uma questão interior, as coisas nos parecem muito mais ambíguas e nebulosas do que pensamos. O que é preto e branco fora de nós, dentro de nós é uma gigantesca escala de cinza.
“Ainda mais frustrante do que o fato da existência, do poder e da tentação do mal, é o fato de ele florescer disfarçado de bem, que ele pode alimentar-se da vida do santificado. Parece que, neste mundo, o sagrado e o profano não existem separados, mas são misturados, inter-relacionados e confundidos um com o outro. É um mundo em que os ídolos podem ser ricos em beleza, em que a veneração a Deus pode ser tingida pela iniqüidade” (Abraham Joshua Heschel)
Um grande engano ao qual os mais piedosos são expostos é o de lidar com o pecado na arena da moral, combatendo suas expressões mais evidentes, enquanto ele se esconde aconchegado no coração. E no coração, a sede das motivações, o pecado tem o poder de contaminar todas as ações, até mesmo as mais nobres. Uma ação nobre com uma motivação corrompida é mais perigosa do que a ação imoral. Porque esta está patente aos olhos e mais próxima do arrependimento enquanto aquela é refugiada pelo invólucro da aparência de piedade. Separar o santo do profano não é uma tarefa tão fácil assim, quando os dois se misturam na fonte das fontes da vida.

Vale a pena checar a si mesmo, de novo...
 

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