terça-feira, 20 de novembro de 2007

Estranha Espiritualidade (Parte 1) – O Bar


Quero refletir um pouco sobre a maneira como a espiritualidade é de alguma forma demonstrada em ambientes pouco religiosos. Uma das coisas que mais chocam os cristãos é encontrar demonstrações de valores cristãos fora dos ambientes de propriedade evangélica. No entanto isso não deveria assustar. Em primeiro lugar, porque Deus é maior do que a Igreja. Seria muito medíocre de nossa parte dizer que a única esfera de manifestação de Deus fosse dentro das seguras paredes de nossos templos evangélicos. Sendo Deus onipresente e sendo aquele que a tudo enche, não é de se admirar que vez por outra o vejamos disfarçado no olhar de um mendigo, ou atrás das barras de uma prisão. Em segundo lugar, não se pode ignorar o fato que todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus, e que em um certo nível, embora corrompidos pelo pecado, existe em cada um, nuances desse vinculo perdido no Éden. Portanto não é de se espantar que por trás de um quadro de um artista não cristão, ou de uma canção de um compositor “incrédulo”, como estamos acostumados a classificar, encontremos traços da nostalgia de uma raça que sente falta de seu vínculo com o Criador. Quero falar sobre essas circunstâncias inóspitas onde podemos perceber essa saudade de Deus. Não que essas manifestações sejam modelos de espiritualidade, pelo contrário, talvez a última coisa em que se pense nesses ambientes seja a relação com Deus, mas creio que em um nível inconsciente, essa humanidade desesperada demonstra esboços de valores espirituais que deveriam ser mais comuns entre nós cristãos. Sei que vários autores cristãos já discorreram sobre o assunto e minha proposta não é inovar, e sim refletir um pouco mais, já que algumas verdades demoram um pouco mais para penetrar no solo duro da religião.
Comecemos pelo bar. Isso mesmo, o botequim. Creio que foi Chuck Swindoll quem primeiro abordou a “teologia do botequim”. Confesso que quando li pela primeira vez, ainda enclausurado pelo fundamentalismo teológico de seminarista recém-formado, estranhei um pouco. A tese afirma que de diversas maneiras o bar acaba se tornando um referencial no que diz respeito às relações humanas. Isso pode causar estranheza, principalmente porque sabemos que boa parte dos desmantelamentos familiares tem como causa principal o vício alcoólico de um beberrão inveterado. Mas por que os bares fazem tanto sucesso? O que existe de atraente em um ambiente mal-cheiroso, repleto de indivíduos resmungões, que faz um ser humano gastar seu tempo e dinheiro em horas de rodadas de cerveja? Bem, além da fraqueza pelo álcool, o bar tem um segredo: autenticidade. Ali, os miseráveis se reúnem em torno de suas misérias sem correrem o risco de serem julgados. Ali, o marido traído encontra outros em igual situação e brinda seu fracasso como homem, na companhia de seus aliados de vergonha. Ali, não há necessidade de máscaras, uma vez que não é precisamente um ambiente próprio para se gabar de suas conquistas. No botequim, só há lugar para miseráveis, e se sua vida for perfeita demais, vá beber sozinho! Ali se juntam os endividados, os maltrapilhos, os amargurados, os desesperançados e os apertados. E se acomodam no balcão para afogar suas mágoas na bebida, mas de certa forma, na companhia de alguém igual. No bar não há julgamentos, porque todos já chegaram lá julgados e na maioria das vezes, condenados. E tudo o que podem fazer é lamentar e rir da miséria uns dos outros, sabendo que se não podem encontrar esperança, podem pelo menos encontrar companhia.
Lamentável que o ser humano, na maioria das vezes, só consiga abandonar suas máscaras, quando ancorado pela embriaguez. Que incrível contra-senso. Somente embriagados, conseguem expor suas mazelas. Uma espécie de lucidez inconsciente, um lampejo de luz na tristeza que se oculta nas sombras da sobriedade.
No entanto o bar não pode oferecer mais do que a solidariedade dos sofredores. Pois ali não há cura, só o compartilhar da dor.
A cura, essa espera-se encontrar algumas esquinas depois, no templo. O problema, é que não há cura se o doente não pode admitir seus cânceres. Não há consolo se o que chora tem que esconder suas lágrimas. Não há perdão, se os pecadores temem ser apedrejados. O que pesa sobre a igreja pós-moderna, é que ao invés de se tornar “mais que vencedora” se tornou “vencedora demais”. Ao invés de abraçar, repele. Ao invés de curar, oferece remédios. Ao invés de ouvir, dá palestras. Ao invés de chorar, reprime. Ao invés de se envolver, evita. Tudo isso porque não podemos admitir alguns pecadores em nossos ambientes. Não suportamos conviver com manifestações explícitas do pecado original. E o sofrimento contesta os nossos pacotes teológicos. E o pecador que não consegue entrar no templo encosta no bar.
Talvez devêssemos mudar nossas nomenclaturas. Ao invés de templos, quem sabe cavernas. Talvez como aquela de Adulão, quando o Pr. Davi, reuniu os bêbados de sua época para formar um exército de fracassados. Talvez nossos templos em forma de auditório, devessem assumir formas arredondadas, com fileiras em forma de círculos como os Alcoólicos Anônimos. Olhando nos olhos, sentindo na pele, jogando fora as pedras e se solidarizando com o próximo. Talvez a única coisa que pode nos resgatar da religião, seja uma embriaguez de graça, que nos tiraria da sobriedade dos fariseus e nos levaria ao arrependimento dos pecadores.
Vivemos tempos em que as Igrejas concorrem umas com as outras para encherem seus auditórios. Mas quem sabe nossos reais concorrentes sejam os botequins?
Que Deus nos ajude a fazer de nossas comunidades, ambientes onde o pecador possa entrar, o fracassado se assentar, o traído possa chorar, e o sofredor, adorar. Onde se possa compartilhar, conhecer e ser conhecido...e é claro, sem álcool.

sábado, 3 de novembro de 2007

Quem Sou Eu?


Dietrich Bonhoeffer foi um grande teólogo protestante alemão, considerado um dos mais relevantes do século XX. Perseguido e aprisionado pelo nazismo, foi enviado a um campo de concentração, onde foi executado, já em fins da Segunda Guerra.


Quem Sou Eu? Quem sou eu? Freqüentemente me dizem
Que saí da confinação da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão.

Quem sou eu? Freqüentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.
Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer.

Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves,
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto?

Quem sou eu? Este, ou o outro?
Sou uma pessoa hoje, e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo? Um hipócrita diante dos outros,
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debanda da vitória já alcançada?

Quem sou eu? Estas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!
 

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